quarta-feira, 19 de junho de 2013

Viajante do Tempo

i. Presente

O que poderia ter sido apenas mais uma manifestação contra o aumento das passagens de ônibus, metrô e trem na cidade de São Paulo acabou repercutindo no mundo inteiro e incentivando o povo à ir às ruas com ainda maior força e empolgação quando a Polícia Militar, sob ordens do Governo do Estado, começou a atacar os manifestantes, causando pânico e indignação.

Menos de uma semana depois, a população não se deixou intimidar e voltou às ruas para protestar. Desta vez, o foco não era mais apenas o aumento das passagens, mas também o simples direito de protestar. Algumas pessoas, evidentemente, mostraram-se contra tal ação, levando em consideração apenas os atos de vandalismo que são inerentes à qualquer tipo de movimentação por mais pacífica que seja. No entanto, a sensação de mudança iminente despertada pela gota d'água de R$ 0,20 centavos  dominou as ruas, espalhando-se para as principais cidades do Brasil e do mundo, onde brasileiros e, sim, estrangeiros, gritavam contra a corrupção, gastos excessivos com a Copa do Mundo de 2014, mídia tendenciosa, entre outros, expandindo o movimento cada vez mais

É claro que a Internet desempenhou um papel fundamental na organização do evento. Sem o apoio das mídias de tv e impressas, o Facebook ajudou todos os manifestantes a se reunirem em grupos, disseminando a informação para os quatro cantos do planeta. Ainda assim, a sensação de nuvem era muito grande, isto é, no Quinto Grande Ato Contra o Aumento das Passagens em São Paulo mais de 100 mil pessoas confirmaram presença. Era fácil identificar cada uma das milhares de pessoas que apoiavam a causa e o número aumentava incessantemente, porém ao mesmo tempo elas pareciam tão distantes. Tão irreais. Era fácil se perguntar quantas realmente estariam presentes, talvez isso desse um ótimo bolão valendo uma Budweiser, deixando no ar a dúvida, será?

Será que agora vai? Era a pergunta que assombrava sua mente.

Finalmente, chegou o dia do Quinto Grande Ato e a vontade de participar era gigantesca. Se questionado, Fernando não saberia responder exatamente o que estava sentindo. Dever? Contribuição? Por quê ir até o lado de fora protestar? É perigoso! Não vai dar em nada. Nesse momento ele desejou mais do que nunca poder ter um vislumbre do futuro e observar como seria sua vida 20, 30, 40 anos adiante. Valeu a pena?

No pain, no gain, certo? Na Internet é muito fácil ser revolucionário e compartilhar suas ideias, mas na vida real a coisa muda completamente. Ainda assim, apesar do medo e do fato de esta ser a sua primeira vez em uma manifestação do gênero, Fernando foi.

O mar de pessoas dominava o Largo da Batata chegando a ser claustrofóbico. Mas o pior ainda era a falta de sinal no celular, o que impossibilitava encontrar os amigos em meio à multidão. A concentração aumenta, o barulho aumenta, o cheiro de cigarro aumenta, de repente a multidão começa a andar e Fernando a segue. Para onde? Isso realmente importa?

No caminho, era difícil entender todos os gritos de ordem, alguns um tanto complexos, outro demasiado simples e pegajosos: "vem! vem! vem pra rua contra o aumento!". As placas também eram das mais variadas, algumas também cômicas, como "saia do xvideos e vem para a rua!".

O clima era de tranquilidade e responsabilidade. Quando foi visto uma pessoa pichando uma parede, todos ao redor viraram e começaram a gritar "SEM VANDALISMO". Fica evidente o desejo de todos de fazer uma manifestação pacífica, apesar da minoria que está lá para causar a desordem.

Enquanto caminha, Fernando pensa que deveria ter feito isto antes e que, sem a menor sombra de dúvida, continuará participando dos atos mesmo após a redução da passagem, lutando por um lugar melhor, pensando no futuro.

Após alguns minutos de caminhada, passando por prédios cheios de gente nas janelas balançando panos brancos, a multidão chama-as para vir às ruas e protestar também. Ele percebe que estão caminhando em direção à Paulista e pensa como

ii. Futuro

as luzes brancas sobre sua cabeça cegam seus olhos. Sua boca abre escancarada mas nenhum som sai dele, sua língua grudada na mandíbula inferior, incapaz de se mover. O máximo que ele consegue fazer é balançar a cabeça de um lado para o outro, seus olhos movendo-se rapidamente, ardendo como se tivessem pingado gotas de limão. Ele se sente preso na cama, mas na verdade é como se não sentisse nada.
De repente mãos apertam seus braços e a reação é tamanha que seus braços voltam à vida, sua coluna também, e ele se ergue na cama, tentando sentar-se. Mãos o empurram de volta à posição deitada e agora três grandes cabeças dominam seu campo de visão. Seus olhos voam da mulher de cabelos castanhos para a de cabelos loiros, dela para o homem de cabelo bem curto e óculos (uma única lente, de apenas um lado, meu Deus, como ele conseguiu notar isso?) e para o teto com as luzes brancas e ofuscantes até voltar à mulher de cabelos castanhos e assim por diante.
Não entendia o que estava acontecendo, sua mente voava à milhão e tudo ao seu redor era estranho. Ele notou que suas pernas ainda se moviam como se estivesse caminhando, apesar da dor gigantesca que subia por suas coxas, era impossível parar. As pessoas seguravam suas pernas e braços e pernas, tentando fazê-lo se manter parados. Ele sente uma picada em seu braço direito e algo extremamente gelado sobre por entre seu ombro e em segundos espalha-se por todo o seu corpo. Sua visão fica mais nítida e, de repente, sua boca volta a ficar úmida. Finalmente, ele consegue se acalmar. Seus olhos fixam-se no cara de cabelo curto e de óculos de uma única lente. As memórias voltam como um tiro em  seu cérebro mas nada faz sentido.
"Qual o seu nome?"
Ele não responde. Seus olhos ainda fixos no monóculo do homem à sua esquerda. Sua boca abre, sua língua impulsiona-se para fora, mas apenas um gemido tosco sai. A imagem da rua, dos prédios, de muitas pessoas ao seu redor, papéis picados caindo do céu, está fixa em sua mente como se parada no tempo, gravada ali para todo o sempre. E aquela luminosidade azul (azul?) cegando os seus olhos, aquelas pessoas estranhas segurando os seus... não, não estão mais segurando os seus braços, na verdade as pessoas não estão mais lá e a coloração agora não é mais nem branca nem azul, mas sim verde. E vai ficando cada vez mais intensa, mas não para o lado claro, branco, e sim para o lado negro, até o quarto se encher de escuridão. Paralisado, grudado à cama, ele sente como se algo estivesse exercendo uma força incrível sobre cada parcela do seu corpo, puxando-o para baixo, ou para cima, ele não tem referencial. A sensação é de queda, mas também pode ser de salto, e quando um grito sai de sua garganta ele encontra-se novamente deitado, cercado agora de cinco pessoas.
"Qual o seu nome?"
Como por passe de mágica, seus olhos fixam no homem que lhe fez a pergunta e ele responde sem hesitação: "Fernando."
As pessoas ao seu redor deixam escapar discretos sorrisos de alívio, mas o homem ao pé da cama, o que fez a primeira pergunta, manteve-se impassível. Ele pergunta:
"Em que ano estamos?"
"2013." mas desta vez sua voz não passou tanta convicção.
"Meu caro amigo Fernando, bem-vindo de volta. Estamos em 2045 e todos ficarão muito contentes em saber que você acordou."

E então, com os olhos fulminantes nos do homem aos pés da cama, Fernando percebe que fez, realmente, uma viagem no tempo. Mas a pior que poderia desejar. Aquela sem volta.